Vou Contar uma História: Questões de Literatura e leitura da Forma Cordel

Autores

Adenilson de Barros Albuquerque
Instituto Federal do Paraná

Sinopse

  Ao iniciar o percurso deste livro, não encontramos melhores palavras do que as do músico argentino Chango Spasiuk, após tocar o chamamé Tierra colorada, no programa Encuentro en estudio (2010). Quando questionado pelo apresentador Lalo Mir sobre o motivo de haver resistência a uma música tão rica, que tem tantos afluentes, que mistura tantas paixões e tantas culturas, tão complexa, virtuosa e eclética, eis a resposta que passamos a traduzir e parafrasear na sequência.

  Na realidade, toda a música da América do Sul, inclusive o chamamé, está relacionada com a conquista, com os jesuítas e com os  africanos. Mas construímos uma sociedade baseada na ignorância. Desconhecemos a nós mesmos absolutamente; desconhecemos a história sobre a qual estamos assentados; desconhecemos a riqueza e o tesouro que estão em nossos pés. Mais que integrando e legitimando, construímos uma sociedade que descarta muitas expressões, devido à ignorância, acima de tudo.

  Spasiuk continua dizendo que há uma espécie de carga estética posta em determinados tipos de música associados a tipos de pessoas, diretamente subestimadas e descartadas, que vieram de diferentes lugares. Nessa marginalização histórica, entrou o chamamé. Mas quando e tocado em palcos da Inglaterra, Alemanha ou Nova Iorque, não se nota preconceito a essa música. Não há má educação em torno dessa linguagem. Percebe-se o público diante de uma música esperançada, dinâmica e poderosa.

  O cordel, como tal, segundo afirma Aderaldo Luciano, um de nossos maiores especialistas no assunto, “só existe no Brasil e é, possivelmente, a única forma original de poesia brasileira, sem reservar qualquer semelhança com o que se chamou literatura de cordel na Península Ibérica, no resto da Europa ou em países da América Latina” (2012, p. 28). Essa postura encontra ressonância em Franklin Maxado (2012, p. 140), que vê no cordel “a legítima tradição poética do país.”

  A legitimidade dessa tradição original não tem destaque, contudo, no mesmo patamar de outros expoentes das letras nacionais, sejam obras ou autores. Em um de nossos mais célebres manuais, a História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi (1970), reeditada frequentemente, a relevância de um Leandro Gomes de Barros não consta sequer no índice onomástico.

  Na quantidade surpreendente de estudos acadêmicos relacionados ao cordel, ele surge fundamentalmente como manifestação popular, muitas vezes conectada à oralidade ou às cantorias, às características – emprestemos aqui uma expressão cara a Antonio Candido (2003, p. 89), outro de nossos críticos mais conhecidos no âmbito dos estudos literários – de um gênero “menor”. O título de Patrimônio Cultural Brasileiro, reconhecido ao cordel em setembro de 2018, ainda não demonstrou força suficiente para desfazer rótulos e determinismos solidificados ao longo das décadas.

  Diante dessas considerações iniciais, esclareçamos de uma vez por todas, o presente livro não pretende confrontar ampla e sistematicamente a história, a teoria e a crítica do cordel.

Apesar de não perdemos de vista tais pressupostos, nosso objetivo está em indicar elementos para o conhecimento e para a identificação da forma cordel, de maneira a defender sua presença nos mais diversos lugares de leitura e discussão, não como algo pitoresco, mas como fonte literária que é, base e expressão para escritores, leitores, editores e críticos.

  De volta às provocações de Chango Spasiuk sobre as ignorâncias e os prejulgamentos que nós latino-americanos atribuímos a muitas de nossas expressões artísticas, poderíamos afirmar que o cordel, por vias não muito distantes, também padece frente aos desconhecimentos que o subestimam e o descartam.

  Agravante em relação à música, linguagem universal bem-recebida e apreciada em contextos estrangeiros, está no fato de que o cordel é linguagem escrita, isto é, está circunscrito aos espaços onde transita o idioma de sua produção. A esperança, a dinâmica e o poder que o chamamé encontra em países distantes não serão facilmente possibilitados pelo intermédio de poemas em português, associados a uma região do Brasil historicamente marginalizada, principalmente em termos econômicos e sociais.

  Será dentro de nossas fronteiras que devemos buscar alternativas para desfazer as ignorâncias. É com essa finalidade que, mesmo não tendo o presente estudo o fôlego e os poderes definitivos, desejamos oferecer perspectivas de leitura para estudantes, professores e quem mais tiver interesse em conhecer um pouco sobre o vasto e fascinante mundo cordelístico.

  No primeiro capítulo, “A forma cordel: elementos para crítica literária”, visitamos questões teóricas e históricas, norteadas por uma proposta de reflexão em torno das noções do que sejam o erudito e o popular. Valemo-nos de diversas referências, com especial atenção aos ensinamentos de Aderaldo Luciano, considerado por nós e por muitos uma das vozes mais importantes entre os estudiosos do cordel. Em certa medida, homenageamos a obra, divisora de águas, desse cientista da literatura.

  No segundo capítulo, “Raimunda Frazão: o vivido e o inventado sob as lentes da poesia”, lançamos um olhar para a literatura da escritora maranhense. Mencionamos, num primeiro momento, algumas de suas obras não arquitetadas na forma cordel, mas relevantes para a compreensão do contexto poético autoral. Nesta e nas demais partes do livro, surgem apontamentos teóricos e históricos complementares aos desenvolvidos no capítulo anterior.

  No terceiro capítulo, “Janduhi Dantas: língua, linguagens e o anfitrião cordel”, passamos pela diversificada produção cordelística do poeta paraibano. Entre outros temas, destacamos as adaptações de gêneros narrativos e cinematográfico para a poesia, a relação do escritor com a história, a gramática e a sala de aula.

  No quarto capítulo, “Izabel Nascimento: literatura e espaços de atuação”, apresentamos traços biográficos e da produção literária de uma das escritoras, ao nosso ver, de maior relevo no cenário atual. Vida e obra da poeta sergipana abraçam-se nas atividades acadêmicas, nas redes digitais, nas publicações individuais e coletivas, na linha de frente dos temas inadiáveis de nosso tempo.

  No quinto capítulo, “Varneci Nascimento: poética engajada e o cordelista total”, apreciamos parte dos quase noventa cordéis publicados pelo poeta baiano radicado em São Paulo. Autor de literatura fundamentalmente comprometida com questões históricas e sociais, além de ter experiência no campo editorial, dedica-se à divulgação do cordel e à comercialização de sua obra.

  No sexto capítulo, “Três leitores de cordel e as conclusões iniciais”, trazemos, num primeiro momento, a participação da professora Maria José Frazão, do professor Otávio Sakai e do poeta Janduhi Dantas. Eles aceitaram gentilmente o nosso convite e escreveram, a partir de três sugestões comuns a todos, relatos sobre suas vidas relacionadas ao cordel. Buscamos estabelecer, finalmente, um diálogo entre suas contribuições e os pontos percorridos nos capítulos precedentes.

  Iniciemos, pois.

 

 Adenilson Albuquerque

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28 October 2021