Mulheres sobre Mulheres: Reflexões à Luz da Análise de Discurso

Autores

Ana Maria de Fátima Leme Tarini
Instituto Federal do Paraná
Franciele Luiza de Oliveira Orsatto
Instituto Federal do Paran´á

Sinopse

o longo dos séculos, observaram-se transformações no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade. Se, num passado não muito distante, as mulheres não podiam participar da vida política e as mulheres brancas, classe média e as mais abastadas estavam fora do mercado de trabalho, limitando-se ao espaço doméstico, na atual conjuntura esse cenário é diferente (no entanto as mulheres da classe trabalhadora e as negras trabalhavam em condições precárias, marginalizadas). Independência financeira, atuação política, liberdade sexual, controle da natalidade, feminismo: estes são alguns conceitos que, gradativamente, puderam ser associados ao universo feminino. Porém, não foi sem embates que tais mudanças ocorreram e, na dinâmica da vida cotidiana, continuam a ocorrer. Na arena discursiva, esses embates tornam-se visíveis, ainda que estejamos falando de “apenas” discurso, com o perdão da ironia.

A proposta deste livro surge, então, para tratar dessa temática lançando-se à observação dos efeitos de sentido a partir dos quais se constrói uma imagem do que é ser mulher em nossa sociedade. Falar sobre mulher é, inescapavelmente, mobilizar sentidos  que não são unívocos (por isso, efeitos de sentido), nem frutos do acaso, mas que surgem a partir de determinadas condições de produção. Em outras palavras, surgem a partir da relação de sujeitos históricos que enunciam a partir de determinadas formações ideológicas (FIs) e formações discursivas (FDs). Como o título do livro sugere, é a Análise de Discurso de linha francesa, que tem Pêcheux como referência, que orienta, em termos teóricos, as discussões aqui apresentadas.

Cada capítulo deste livro, escrito por diferentes pesquisadoras que se debruçam sobre a temática, aborda um aspecto diferente sobre os desdobramentos do que é ser mulher. E ser mulher é conviver, muitas vezes, com a violência – que pode ser discursivizada de uma forma que merece atenção: mulher estuprada, violentada ou “ofendida”? Tocando nesse ponto, o primeiro capítulo, intitulado “De vítima à ofendida: a violência sexual contra as mulheres em discursos de documentos jurídicos”, aborda como o discurso jurídico, ao longo dos anos, trata a mulher vítima de violência sexual.

No segundo capítulo, “No ranger da memória: o movimento feminista e o FEMEN”, se investiga como uma memória a respeito do movimento feminista é retomada nas intervenções do grupo FEMEN, surgido na Ucrânia em 2008. Com inscrições em seus corpos, as militantes fazem falar as diferentes formas de violências, repressões e opressões pelas quais as mulheres ainda passam no século XXI.

No terceiro, “Negando as aparências, disfarçando as evidências”: que vozes ecoam nas campanhas de combate à violência contra a mulher?”, novamente a questão da violência aparece. Campanhas publicitárias de combate à violência contra a mulher são analisadas com o objetivo de verificar como se constrói a imagem da vítima de agressão a partir da identificação das formações discursivas que se revelam nessas campanhas. O quarto capítulo, “Femvertising: ode às mulheres?”, também lança o olhar sobre o domínio do discurso publicitário. Aborda-se a questão do “femvertising” – palavra inglesa que surge da união dos termos Feminism (Feminismo) e advertising (publicidade) – para levantar o seguinte questionamento: a publicidade pode contribuir com o empoderamento das mulheres?

Na sequência, “Mulher e consumo na revista Nova: digo-lhe o que compras e também o que és” aborda como o conteúdo jornalístico – supostamente independente da publicidade, mas visivelmente influenciado por ela – molda uma imagem de mulher associando o “ter” ao “ser”. A mulher, agora não mais subordinada ao homem em termos financeiros, é o que é pelo que possui; ou melhor, pelo que é capaz de consumir.

Em “Entre casa [de prostituição] e [de família]: elipse e fissura dos sentidos”, aborda-se um aspecto sintático aparentemente preso à coerção e à rigidez da estrutura da língua – a elipse – para dar visibilidade aos sentidos em tensão que constituem a palavra casa. As designações para “casa” se encontram em tensão, pois há uma disputa pelo domínio dos sentidos: de um lado, casa para mulher e para família; de outro, para prostituta.

A maternidade tem espaço na obra com o artigo “Leniência discursiva: a culpa, a punição e a rendição”. Neste capítulo, a autora focaliza sua análise em uma personagem feminina do filme A garota no Trem (2016), do diretor Tate Taylor, baseado no best-seller de autoria de Paula Hawkins. Rachel, uma mulher na idade entre os 35-40 anos, divorciada, alcoólatra e desempregada em consequência do vício, tem conflitos no campo do relacionamento afetivo e quanto à maternidade (o que aparece como motivador de quase todos os outros conflitos). Afastando a leitura do aspecto individual da personagem, ela é observada a partir do que lhe é social, o que leva a tocar na fissura de uma natureza feminina construída, que dita determinados conceitos e imposições a respeito da mulher frente à maternidade.

No capítulo final, “Da Capitu à vadia: as mulheres e suas formas de resistência”, se analisa como na obra literária Dom Casmurro e no movimento feminista Marcha das Vadias diz-se de diferentes posições que podem ou não serem ocupadas pelas mulheres na sociedade patriarcal. A reflexão se lança sobre a retomada, na Marcha das Vadias, para contradizer, de dizeres que, pelo funcionamento da memória, ainda estão estabilizados e em circulação – e violentam a mulher.

O que esperamos, com todas essas discussões, é dar visibilidade a um tema sobre o qual ainda há muito que dizer. Não pretendemos fornecer ao leitor respostas definitivas, mas instigar a reflexão e o questionamento, colocando sob suspeita as verdades “evidentes” que envolvem o ser mulher. Aquilo que é óbvio, por ser naturalizado historicamente, merece ser alvo de contestação ou, no mínimo, um olhar de desconfiança. Afinal, se, por um lado, não é por acaso que os sentidos são o que são, por outro, sempre há a possibilidade de se construir (e lutar por) novos sentidos.

 

Ana Maria de Fátima Leme Tarini
Franciele Luzia de Oliveira Orsatto

Organizadoras

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Publicado

6 September 2018